segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Fizemos algo de errado

Pronunciamento do Presidente Oscar Arias, da Costa Rica
- Discurso proferido na presença de todos os presidentes latino-americanos, na Cúpula das Américas em Trinidad e Tobago, 18 de abril de 2009
"ALGO HICIMOS MAL"


"Tenho a impressão de que cada vez que os países caribenhos e latino-americanos se reúnem com o presidente dos Estados Unidos da América, é para pedir-lhe coisas ou para reclamar coisas. Quase sempre, é para culpar os Estados Unidos de nossos males passados, presentes e futuros. Não creio que isso seja de todo justo.
Não podemos esquecer que a América Latina teve universidades antes de que os Estados Unidos criassem Harvard e William & Mary, que são as primeiras universidades desse país. Não podemos esquecer que nesse continente, como no mundo inteiro, pelo menos até 1750 todos os americanos eram mais ou menos iguais: todos eram pobres.
Ao aparecer a Revolução Industrial na Inglaterra, outros países sobem
nesse vagão: Alemanha, França, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e aqui a Revolução Industrial passou pela América Latina como um cometa, e não nos demos conta. Certamente perdemos a oportunidade. Há também uma diferença muito grande.
Lendo a história da América Latina, comparada com a história dos Estados Unidos, compreende-se que a América Latina não teve um John Winthrop espanhol, nem português, que viesse com a Bíblia em sua mão disposto a construir uma Cidade sobre uma Colina, uma cidade que brilhasse, como foi a pretensão dos peregrinos que chegaram aos Estados Unidos.
Faz 50 anos, o México era mais rico que Portugal.
Em 1950, um país como o Brasil tinha uma renda per capita mais elevada que o da Coréia do Sul. Faz 60 anos, Honduras tinha mais riqueza per capita que Cingapura, e hoje Cingapura em questão de 35 a 40 anos é um país com $40.000 de renda anual por habitante.
Bem, algo nós fizemos mal, os latino-americanos.
Que fizemos errado?
Nem posso enumerar todas as coisas que fizemos mal.
Para começar, temos uma escolaridade de 7 anos.
Essa é a escolaridade média da América Latina e não é o caso da maioria dos países asiáticos. Certamente não é o caso de países como Estados Unidos e Canadá, com a melhor educação do mundo, similar a dos europeus.
De cada 10 estudantes que ingressam no nível secundário na América
Latina, em alguns países, só um termina esse nível secundário.
Há países que têm uma mortalidade infantil de 50 crianças por cada mil, quando a média nos países asiáticos mais avançados é de 8, 9 ou 10.
Nós temos países onde a carga tributária é de 12% do produto interno bruto e não é responsabilidade de ninguém, exceto nossa, que não cobremos dinheiro das pessoas mais ricas dos nossos países.
Ninguém tem a culpa disso, a não ser nós mesmos
Em 1950, cada cidadão norte-americano era quatro vezes mais rico que
um cidadão latino-americano. Hoje em dia, um cidadão norte-americano é 10, 15 ou 20 vezes mais rico que um latino-americano.
Isso não é culpa dos Estados Unidos, é culpa nossa.
No meu pronunciamento desta manhã, me referi a um fato que para mim é grotesco e que somente demonstra que o sistema de valores do século XX, que parece ser o que estamos pondo em prática também no século XI, é um sistema de valores equivocado.
Porque não pode ser que o mundo rico dedique 100.000 milhões de dólares para aliviar a pobreza dos 80% da população do mundo "num planeta que tem 2.500 milhões de seres humanos com uma renda de $2 por dia" e que gaste 13 vezes mais ($1.300.000.000.000) em armas e soldados.
*Como disse esta manhã, não pode ser que a América Latina gaste $50.000* milhões em armas e soldados.
Eu me pergunto: quem é o nosso inimigo?
Nosso inimigo, presidente Correa, desta desigualdade que o Sr. aponta com muita razão, é a falta de educação; é o analfabetismo; é que não gastamos na saúde de nosso povo; que não criamos a infra-estruturar necessária, os caminhos, as estradas, os portos, os aeroportos; que não estamos dedicando os recursos necessários para deter a degradação do meio ambiente; é a desigualdade que temos que nos envergonhar realmente; é produto, entre muitas outras coisas, certamente, de que não estamos educando nossos filhos e nossas filhas.
Vá alguém a uma universidade latino-americana e parece no entanto que estamos nos sessenta, setenta ou oitenta.
Parece que nos esquecemos de que em 9 de novembro de 1989 aconteceu algo de muito importante, ao cair o Muro de Berlim, e que o mundo mudou.
Temos que aceitar que este é um mundo diferente, e nisso francamente
penso que os acadêmicos, que toda gente pensante, que todos os economistas, que todos os historiadores, quase concordam que o século
XXI é um século dos asiáticos não dos latino-americanos. E eu, lamentavelmente, concordo com eles. Porque enquanto nós continuamos discutindo sobre ideologias, continuamos discutindo sobre todos os "ismos" (qual é o melhor? capitalismo, socialismo, comunismo, liberalismo, neoliberalismo, socialcristianismo...) os asiáticos encontraram um "ismo" muito realista para o século XXI e o final do século XX, que é o *pragmatismo*.
Para só citar um exemplo, recordemos que quando Deng Xiaoping visitou Cingapura e a Coréia do Sul, depois de ter-se dado conta de que seus próprios vizinhos estavam enriquecendo de uma maneira muito
acelerada, regressou a Pequim e disse aos velhos camaradas maoístas
que o haviam acompanhado na Grande Marcha: "Bem, a verdade, queridos camaradas, é que a mim não importa se o gato é branco ou negro, só o que me interessa é que cace ratos".
E se Mao estivesse vivo, teria morrido de novo quando disse que "a verdade é que enriquecer é glorioso".
E enquanto os chineses fazem isso, e desde 1979 até hoje crescem a 11%, 12% ou 13%, e tiraram 300 milhões de habitantes da pobreza, nós
continuamos discutindo sobre ideologias que devíamos ter enterrado há
muito tempo atrás.
A boa notícia é que isto Deng Xiaoping o conseguiu quando tinha 74
anos. Olhando em volta, queridos presidentes, não vejo ninguém que
esteja perto dos 74 anos.
Por isso só lhes peço que não esperemos completá-los para fazer as
mudanças que temos que fazer.

Muchas gracias."

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

BID E EDUCAÇÃO

Cristovam sugere que BID invista em educação

Ao discursar na sessão de homenagem ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), pelos seus 50 anos, a serem comemorados no dia 30 de dezembro, o senador Cristovam Buarque (PDT-DF) defendeu a participação da instituição em programas de financiamentos voltados para a melhoria do sistema educacional dos países associados com deficiências neste setor.
- A gente precisa de um banco que ajude a fazer a revolução do século 21: a revolução do conhecimento para todos, igualmente, e a revolução do conhecimento da mais alta qualidade para aqueles que tiverem talento, persistência e vocação, mas escolhidos entre todos, não apenas entre uma minoria que, no nosso continente, consegue aprender a ler, fazer o ensino fundamental, terminar o ensino médio, entrar numa universidade e fazer um bom curso - disse.
Segundo Cristovam, "a saída" para o desenvolvimento de países pobres não está na expansão de indústrias ou na agricultura de exportação, mas apenas no aprimoramento das escolas.
Autor do requerimento de homenagem, Cristovam justificou seu pedido reconhecendo a importância fundamental do BID para vários projetos em andamento no Distrito Federal, iniciados à época de governo. A razão mais importante, no entanto, para a realização da sessão, foi de ordem sentimental, em razão de ter trabalhado durante seis anos na instituição em Washington, Tegucigalpa e Quito.
Na primeira parte de seu pronunciamento, Cristovam apresentou um histórico da trajetória do BID, destacando a participação do presidente Juscelino Kubitschek para a criação do banco. Em 1958 JK, lembrou o senador, sugeriu ao presidente norte-americano Eisenhower a ampliação dos esforços de cooperação, o que levou a decisão de fundação do banco.
- Os empréstimos e as garantias e doações disponibilizados pelo BID ajudaram a financiar projetos de desenvolvimento e até hoje respaldam estratégias para reduzir a pobreza, expandir o crescimento, ampliar o comércio e o investimento, além de promover a integração regional, o desenvolvimento do setor privado e a modernização do Estado - afirmou Cristovam.

Da Redação / Agência Senado 26.XI.2009

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Ler e refletir: O visitante que veio da Pérsia

O visitante que veio da Pérsia

Jornal do Brasil 25/11/2009

Mauro Santayana

A movimentação diplomática do Brasil, tendo à frente a personalidade peculiar de seu atual chefe de Estado, vem sendo criticada pela oposição e meios de comunicação, e de forma ainda mais contundente, quando se dispôs a receber o presidente do Irã. Houve passeatas, muito bem organizadas, com dísticos e faixas caras, contra o visitante. Não houve os mesmos protestos quando o presidente recebeu, há poucos dias, o presidente de Israel.
O presidente do Irã é alvo da ira geral do Ocidente porque, em seu confronto com Israel – única potência nuclear do Oriente Médio – nega o Holocausto. Ele se inclui entre os revisionistas, alguns alemães, outros ingleses, outros ainda da hierarquia da Igreja, que também negam a existência dos campos de extermínio, ou tentam diminuir o número de mortos, judeus e não judeus, nos campos de concentração. Os judeus, os comunistas, os ciganos e os eslavos foram as vítimas preferenciais dos nazistas, dizimados pelo trabalho forçado, pela fome e pelo gás.
Há farta documentação do que ocorreu entre 20 de janeiro de 1942, quando os nazistas decidiram, no encontro de Wannsee, programar a “solução final” para o problema judaico, e 17 de janeiro de 1945, quando os soviéticos ocuparam o campo de Auschwitz. Nos três anos, milhões de seres humanos foram chacinados pelos nazistas. O presidente Ahmadinejad sabe disso, mas, em sua luta contra Israel, nega-se a aceitar a História. Se foram 6 milhões, 600 mil, ou 60 mil, o crime é o mesmo. Não é o número de vítimas que nos deve espantar, e sim a presunção de superioridade racial de que se arrogavam os alemães para a prática do genocídio.
O mesmo sentimento de horror que nos leva ao confrangimento da alma, diante do que fizeram os alemães, nos atinge, quando assistimos ao que se passa na Palestina. Não há, diante das tragédias de nosso tempo, bons culpados e vítimas más. Há culpados e há vítimas. A maior oposição que se faz ao Estado de Israel, e com razões históricas, é o fato de que os palestinos tenham sido privados de sua terra, privados de água, submetidos ao bloqueio de comida e de remédios, além de cercados pelo muro e bombardeados. Os palestinos nunca fizeram progroms, como os eslavos, jamais mandaram queimar judeus – como os cristãos, em Basileia, e em outros lugares. Não os submeteram aos autos de fé, como os ibéricos, durante a Inquisição. Não os eliminaram nos campos poloneses. Não lhes cabe purgar os crimes do antissemitismo, quando eles também são semitas, tanto quanto os que lhes ocupam o solo.
Estabeleceu-se, pela força do convencimento dos meios mundiais de comunicação, que os palestinos são terroristas, e os israelenses, democratas. Não nos incluímos entre os que admiram o presidente do Irã. Algumas de suas declarações espantam pela falta de senso. Mas não lhe falta bom senso quando defende o direito de o Irã desenvolver pesquisas nucleares. Se os iranianos são ameaça a Israel, com seu projeto, os senhores da guerra de Israel, que já dispõem de artefatos nucleares, como orgulhosamente proclamam, e anunciam que irão, são ameaça ainda maior. Nada os faz com mais ou com menos direitos no mundo. Nem a fé religiosa, nem os hábitos cotidianos. A língua persa não é menos importante do que a hebraica, com sua rica literatura. Nem o presidente Ahmadinejad é menos chefe de Estado pelo fato de dispensar o uso da gravata.
O segredo do presidente Lula é a sua percepção de homem comum. Ele acha, e com razão, que uma boa conversa pode resolver os problemas, desde que haja boa-fé entre todos os interlocutores. Disso se deu conta Obama que pediu, pessoalmente, a Lula, durante o encontro do G-8, em Áquila, na Itália, no dia 9 de julho deste ano, que tentasse demover Ahmadinejad de desenvolver armas nucleares – conforme disse, no mesmo dia, à imprensa, o porta-voz da Casa Branca, Robert Gibbs. Ao que parece, o New York Times não cobriu o encontro de Áquila.
Os opositores domésticos de Lula se esquecem disso. Os Estados Unidos que admiram não é o de Obama, mas o de Bush e Chenney. É difícil que o presidente consiga, no Oriente Médio, uma paz negada há mais de 60 anos. Mas, se ele conseguir negociações entre as partes envolvidas, mesmo com progressos limitados, será bom para o mundo. Não são todos os judeus de Israel que querem eliminar os palestinos e bombardear Teerã, e nem todos os muçulmanos desejam o fim de Israel. É contando com eles que Lula busca a paz.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Por um Quilombo do Terceiro Milênio JB 20.X.2009

Por um quilombo do terceiro milênio

Antoninho Marmo Trevisan, Jornal do Brasil

RIO - O Dia da Consciência Negra é comemorado em 20 de novembro, data em que o bandeirante Domingos Jorge Velho teria assassinado Zumbi dos Palmares, no ano de 1695. Na ocasião, o herói da luta negra contra a escravidão contava cerca de 40 anos de idade.
Se vivesse hoje, o quarentão de pele escura seria um homem sem curso superior, com renda mensal inferior a mil reais. Se fosse casado, sua mulher estaria desempregada, ou trabalharia sem carteira assinada e ganharia mais ou menos 700 reais por mês. Os filhos teriam largado a escola antes de concluírem o ensino fundamental. Se algum deles ingressasse na universidade, seria o primeiro diplomado da família.
Imaginar um presente tão pouco glorioso para uma das figuras mais importantes da história brasileira não é delírio, mas uma dedução razoável quando se toma como base a Relação Anual de Informação Social (Rais) do Ministério do Trabalho, que teve sua última edição divulgada em meados deste ano.
O Rais mostra que o Brasil ainda é um país em que as oportunidades de trabalho e de melhoria de renda estão nas mãos dos homens brancos. Eles ocupam 11,9 milhões de postos de trabalho formais, contra 7,6 milhões de empregos ocupados por mulheres brancas e apenas 498.521 por mulheres negras. O salário médio dos brancos é de R$ 1.671,00; das mulheres brancas, R$ 1.407,00, e das negras, em torno de R$ 790.
Esses dados revelam uma realidade incômoda: embora o Brasil não seja um país racista na estrita acepção do termo, ainda persiste uma discriminação subjacente, disfarçada.
De acordo com o mapa das ações afirmativas no ensino superior, elaborado pelo Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), 32% das instituições públicas de ensino existentes no país (ou seja, 72 delas) promovem algum tipo de ação afirmativa. Destas, 53 adotam cotas étnico-raciais, sendo que 34 instituições possuem medidas afirmativas específicas para negros. O critério mais utilizado para identificar quem tem direito às cotas é a autodeclaração.
A falta de critérios mais bem delineados para a inclusão deste ou daquele indivíduo nos benefícios das ações afirmativas suscita distorções, como o episódio em que dois gêmeos idênticos se candidataram à Universidade de Brasília pelo sistema de cotas e apenas um deles foi considerado negro. Esses casos isolados põem fogo nos debates, mas tiram do foco o que é mais importante: primeiro, saber se as cotas funcionam; segundo, descobrir se elas são, de fato, a melhor opção para o Brasil, ou se fizeram sentido em um momento específico de um país que nada tem a ver com o nosso – no caso, os Estados Unidos pós-anos 60.
As disparidades brasileiras devem ser analisadas a partir da perspectiva de um racismo estrutural, calcado em analfabetismo. No começo desta década, havia 47% de negros, com 60 anos ou mais de idade, analfabetos, e 25% dos brancos na mesma situação. E, enquanto os brasileiros brancos permanecem na escola por 7,7 anos (o que é pouco!), os negros estudam, em média, 5,8 anos.
Quem atua junto a grandes organizações, como é o meu caso, percebe na prática que o mundo corporativo ainda não tem uma presença significativa de mulheres, nem de negros, e menos ainda de mulheres negras jovens. E nas faculdades de contabilidade, que são celeiros de futuros auditores e consultores, esse perfil étnico não se faz presente de maneira significativa. O que afasta essas pessoas de uma profissão que é, a um só tempo, interessante, rentável e ascendente?
Como se vê, as perguntas são muitas, e as respostas, poucas e insatisfatórias. Corrigir distorções históricas é fundamental para a construção de um país mais justo. Não se deve, contudo, incorrer no erro de reduzir a questão da exclusão social ao aspecto étnico-racial. Num país como o nosso, onde uma pessoa de sobrenome italiano pode ter a pele escura e traços inequivocamente africanos, as políticas públicas voltadas para a promoção da equidade precisam ser cuidadosamente planejadas.
No meu entendimento, o foco primordial deve ser a busca por uma educação cada vez mais excelente. O ensino gratuito, universal e de boa qualidade é o primeiro passo para tirar as crianças e os jovens da perigosa zona de exclusão. Mais do que um Dia da Consciência Negra, este 20 de novembro deve ser um Dia da Consciência Brasileira, no qual todos nós, louros, pretos, ruivos, de olhos azuis ou olhos puxados, de cabelos lisos ou encaracolados, estaremos unidos em torno de um só projeto: a construção de um país melhor.

Antoninho Marmo Trevisan, além de empresário, é educador e consultor, presidente da Trevisan Gestão, Consultoria e Educação e do Conselho Consultivo da BDO e, ainda, membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES).

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Entrevista do Prof. Kabengele à Revista Forum

Nosso racismo é um crime perfeito
por Camila Souza Ramos e Glauco Faria

Fórum - O senhor veio do antigo Zaire que, apesar de ter alguns pontos de contato com a cultura brasileira e a cultura do Congo, é um país bem diferente. O senhor sentiu, quando veio pra cá, a questão racial? Como foi essa mudança para o senhor?Kabengele - Essas coisas não são tão abertas como a gente pensa. Cheguei aqui em 1975, diretamente para a USP, para fazer doutorado. Não se depara com o preconceito à primeira vista, logo que sai do aeroporto. Essas coisas vêm pouco a pouco, quando se começa a descobrir que você entra em alguns lugares e percebe que é único, que te olham e já sabem que não é daqui, que não é como “nossos negros”, é diferente. Poderia dizer que esse estranhamento é por ser estrangeiro, mas essa comparação na verdade é feita em relação aos negros da terra, que não entram em alguns lugares ou não entram de cabeça erguida.Depois, com o tempo, na academia, fiz disciplinas em antropologia e alguns de meus professores eram especialistas na questão racial. Foi através da academia, da literatura, que comecei a descobrir que havia problemas no país. Uma das primeiras aulas que fiz foi em 1975, 1976, já era uma disciplina sobre a questão racial com meu orientador João Batista Borges Pereira. Depois, com o tempo, você vai entrar em algum lugar em que está sozinho e se pergunta: onde estão os outros? As pessoas olhavam mesmo, inclusive olhavam mais quando eu entrava com minha mulher e meus filhos. Porque é uma família inter-racial: a mulher branca, o homem negro, um filho negro e um filho mestiço. Em todos os lugares em que a gente entrava, era motivo de curiosidade. O pessoal tentava ser discreto, mas nem sempre escondia. Entrávamos em lugares onde geralmente os negros não entram.A partir daí você começa a buscar uma explicação para saber o porquê e se aproxima da literatura e das aulas da universidade que falam da discriminação racial no Brasil, os trabalhos de Florestan Fernandes, do Otavio Ianni, do meu próprio orientador e de tantos outros que trabalharam com a questão. Mas o problema é que quando a pessoa é adulta sabe se defender, mas as crianças não. Tenho dois filhos que nasceram na Bélgica, dois no Congo e meu caçula é brasileiro. Quantas vezes, quando estavam sozinhos na rua, sem defesa, se depararam com a polícia?Meus filhos estudaram em escola particular, Colégio Equipe, onde estudavam filhos de alguns colegas professores. Eu não ia buscá-los na escola, e quando saíam para tomar ônibus e voltar para casa com alguns colegas que eram brancos, eles eram os únicos a ser revistados. No entanto, a condição social era a mesma e estudavam no mesmo colégio. Por que só eles podiam ser suspeitos e revistados pela polícia? Essa situação eu não posso contar quantas vezes vi acontecer. Lembro que meu filho mais velho, que hoje é ator, quando comprou o primeiro carro dele, não sei quantas vezes ele foi parado pela polícia. Sempre apontando a arma para ele para mostrar o documento. Ele foi instruído para não discutir e dizer que os documentos estão no porta-luvas, senão podem pensar que ele vai sacar uma arma. Na realidade, era suspeito de ser ladrão do próprio carro que ele comprou com o trabalho dele. Meus filhos até hoje não saem de casa para atravessar a rua sem documento. São adultos e criaram esse hábito, porque até você provar que não é ladrão... A geografia do seu corpo não indica isso.Então, essa coisa de pensar que a diferença é simplesmente social, é claro que o social acompanha, mas e a geografia do corpo? Isso aqui também vai junto com o social, não tem como separar as duas coisas. Fui com o tempo respondendo à questão, por meio da vivência, com o cotidiano e as coisas que aprendi na universidade, depoimentos de pessoas da população negra, e entendi que a democracia racial é um mito. Existe realmente um racismo no Brasil, diferenciado daquele praticado na África do Sul durante o regime do apartheid, diferente também do racismo praticado nos EUA, principalmente no Sul. Porque nosso racismo é, utilizando uma palavra bem conhecida, sutil. Ele é velado. Pelo fato de ser sutil e velado isso não quer dizer que faça menos vítimas do que aquele que é aberto. Faz vítimas de qualquer maneira.Revista Fórum - Quando você tem um sistema como o sul-africano ou um sistema de restrição de direitos como houve nos EUA, o inimigo está claro. No caso brasileiro é mais difícil combatê-lo...Kabengele - Claro, é mais difícil. Porque você não identifica seu opressor. Nos EUA era mais fácil porque começava pelas leis. A primeira reivindicação: o fim das leis racistas. Depois, se luta para implementar políticas públicas que busquem a promoção da igualdade racial. Aqui é mais difícil, porque não tinha lei nem pra discriminar, nem pra proteger. As leis pra proteger estão na nova Constituição que diz que o racismo é um crime inafiançável. Antes disso tinha a lei Afonso Arinos, de 1951. De acordo com essa lei, a prática do racismo não era um crime, era uma contravenção. A população negra e indígena viveu muito tempo sem leis nem para discriminar nem para proteger.Revista Fórum - Aqui no Brasil há mais dificuldade com relação ao sistema de cotas justamente por conta do mito da democracia racial? Kabengele - Tem segmentos da população a favor e contra. Começaria pelos que estão contra as cotas, que apelam para a própria Constituição, afirmando que perante a lei somos todos iguais. Então não devemos tratar os cidadãos brasileiros diferentemente, as cotas seriam uma inconstitucionalidade. Outro argumento contrário, que já foi demolido, é a ideia de que seria difícil distinguir os negros no Brasil para se beneficiar pelas cotas por causa da mestiçagem. O Brasil é um país de mestiçagem, muitos brasileiros têm sangue europeu, além de sangue indígena e africano, então seria difícil saber quem é afro-descendente que poderia ser beneficiado pela cota. Esse argumento não resistiu. Por quê? Num país onde existe discriminação antinegro, a própria discriminação é a prova de que é possível identificar os negros. Senão não teria discriminação.Em comparação com outros países do mundo, o Brasil é um país que tem um índice de mestiçamento muito mais alto. Mas isso não pode impedir uma política, porque basta a autodeclaração. Basta um candidato declarar sua afro-descendência. Se tiver alguma dúvida, tem que averiguar. Nos casos-limite, o indivíduo se autodeclara afrodescendente. Às vezes, tem erros humanos, como o que aconteceu na UnB, de dois jovens mestiços, de mesmos pais, um entrou pelas cotas porque acharam que era mestiço, e o outro foi barrado porque acharam que era branco. Isso são erros humanos. Se tivessem certeza absoluta que era afro-descendente, não seria assim. Mas houve um recurso e ele entrou. Esses casos-limite existem, mas não é isso que vai impedir uma política pública que possa beneficiar uma grande parte da população brasileira.Além do mais, o critério de cota no Brasil é diferente dos EUA. Nos EUA, começaram com um critério fixo e nato. Basta você nascer negro. No Brasil não. Se a gente analisar a história, com exceção da UnB, que tem suas razões, em todas as universidades brasileiras que entraram pelo critério das cotas, usaram o critério étnico-racial combinado com o critério econômico. O ponto de partida é a escola pública. Nos EUA não foi isso. Só que a imprensa não quer enxergar, todo mundo quer dizer que cota é simplesmente racial. Não é. Isso é mentira, tem que ver como funciona em todas as universidades. É necessário fazer um certo controle, senão não adianta aplicar as cotas. No entanto, se mantém a ideia de que, pelas pesquisas quantitativas, do IBGE, do Ipea, dos índices do Pnud, mostram que o abismo em matéria de educação entre negros e brancos é muito grande. Se a gente considerar isso então tem que ter uma política de mudança. É nesse sentido que se defende uma política de cotas.O racismo é cotidiano na sociedade brasileira. As pessoas que estão contra cotas pensam como se o racismo não tivesse existido na sociedade, não estivesse criando vítimas. Se alguém comprovar que não tem mais racismo no Brasil, não devemos mais falar em cotas para negros. Deveríamos falar só de classes sociais. Mas como o racismo ainda existe, então não há como você tratar igualmente as pessoas que são vítimas de racismo e da questão econômica em relação àquelas que não sofrem esse tipo de preconceito. A própria pesquisa do IPEA mostra que se não mudar esse quadro, os negros vão levar muitos e muitos anos para chegar aonde estão os brancos em matéria de educação. Os que são contra cotas ainda dão o argumento de que qualquer política de diferença por parte do governo no Brasil seria uma política de reconhecimento das raças e isso seria um retrocesso, que teríamos conflitos, como os que aconteciam nos EUA.Fórum - Que é o argumento do Demétrio Magnoli.Kabengele - Isso é muito falso, porque já temos a experiência, alguns falam de mais de 70 universidades públicas, outros falam em 80. Já ouviu falar de conflitos raciais em algum lugar, linchamentos raciais? Não existe. É claro que houve manifestações numa universidade ou outra, umas pichações, "negro, volta pra senzala". Mas isso não se caracteriza como conflito racial. Isso é uma maneira de horrorizar a população, projetar conflitos que na realidade não vão existir.Fórum - Agora o DEM entrou com uma ação no STF pedindo anulação das cotas. O que motiva um partido como o DEM, qual a conexão entre a ideologia de um partido ou um intelectual como o Magnoli e essa oposição ao sistema de cotas? Qual é a raiz dessa resistência?Kabengele – Tenho a impressão que as posições ideológicas não são explícitas, são implícitas. A questão das cotas é uma questão política. Tem pessoas no Brasil que ainda acreditam que não há racismo no país. E o argumento desse deputado do DEM é esse, de que não há racismo no Brasil, que a questão é simplesmente socioeconômica. É um ponto de vista refutável, porque nós temos provas de que há racismo no Brasil no cotidiano. O que essas pessoas querem? Status quo. A ideia de que o Brasil vive muito bem, não há problema com ele, que o problema é só com os pobres, que não podemos introduzir as cotas porque seria introduzir uma discriminação contra os brancos e pobres. Mas eles ignoram que os brancos e pobres também são beneficiados pelas cotas, e eles negam esse argumento automaticamente, deixam isso de lado.Fórum – Mas isso não é um cinismo de parte desses atores políticos, já que eles são contra o sistema de cotas, mas também são contra o Bolsa-Família ou qualquer tipo de política compensatória no campo socioeconômico?Kabengele - É interessante, porque um país que tem problemas sociais do tamanho do Brasil deveria buscar caminhos de mudança, de transformação da sociedade. Cada vez que se toca nas políticas concretas de mudança, vem um discurso. Mas você não resolve os problemas sociais somente com a retórica. Quanto tempo se fala da qualidade da escola pública? Estou aqui no Brasil há 34 anos. Desde que cheguei aqui, a escola pública mudou em algum lugar? Não, mas o discurso continua. "Ah, é só mudar a escola pública." Os mesmos que dizem isso colocam os seus filhos na escola particular e sabem que a escola pública é ruim. Poderiam eles, como autoridades, dar melhor exemplo e colocar os filhos deles em escola pública e lutar pelas leis, bom salário para os educadores, laboratórios, segurança. Mas a coisa só fica no nível da retórica.E tem esse argumento legalista, "porque a cota é uma inconstitucionalidade, porque não há racismo no Brasil". Há juristas que dizem que a igualdade da qual fala a Constituição é uma igualdade formal, mas tem a igualdade material. É essa igualdade material que é visada pelas políticas de ação afirmativa. Não basta dizer que somos todos iguais. Isso é importante, mas você tem que dar os meios e isso se faz com as políticas públicas. Muitos disseram que as cotas nas universidades iriam atingir a excelência universitária. Está comprovado que os alunos cotistas tiveram um rendimento igual ou superior aos outros. Então a excelência não foi prejudicada. Aliás, é curioso falar de mérito como se nosso vestibular fosse exemplo de democracia e de mérito. Mérito significa simplesmente que você coloca como ponto de partida as pessoas no mesmo nível. Quando as pessoas não são iguais, não se pode colocar no ponto de partida para concorrer igualmente. É como você pegar uma pessoa com um fusquinha e outro com um Mercedes, colocar na mesma linha de partida e ver qual o carro mais veloz. O aluno que vem da escola pública, da periferia, de péssima qualidade, e o aluno que vem de escola particular de boa qualidade, partindo do mesmo ponto, é claro que os que vêm de uma boa escola vão ter uma nota superior. Se um aluno que vem de um Pueri Domus, Liceu Pasteur, tira nota 8, esse que vem da periferia e tirou nota 5 teve uma caminhada muito longa. Essa nota 5 pode ser mais significativa do que a nota 7 ou 8. Dando oportunidade ao aluno, ele não vai decepcionar.Foi isso que aconteceu, deram oportunidade. As cotas são aplicadas desde 2003. Nestes sete anos, quantos jovens beneficiados pelas cotas terminaram o curso universitário e quantos anos o Brasil levaria para formar o tanto de negros sem cotas? Talvez 20 ou mais. Isso são coisas concretas para as quais as pessoas fecham os olhos. No artigo do professor Demétrio Magnoli, ele me critica, mas não leu nada. Nem uma linha de meus livros. Simplesmente pegou o livro da Eneida de Almeida dos Santos, Mulato, negro não-negro e branco não-branco que pediu para eu fazer uma introdução, e desta introdução de três páginas ele tirou algumas frases e, a partir dessas frases, me acusa de ser um charlatão acadêmico, de professar o racismo científico abandonado há mais de um século e fazer parte de um projeto de racialização oficial do Brasil. Nunca leu nada do que eu escrevi.A autora do livro é mestiça, psiquiatra e estuda a dificuldade que os mestiços entre branco e negro têm pra construir a sua identidade. Fiz a introdução mostrando que eles têm essa dificuldade justamente por causa de serem negros não-negros e brancos não-brancos. Isso prejudica o processo, mas no plano político, jurídico, eles não podem ficar ambivalentes. Eles têm que optar por uma identidade, têm que aceitar sua negritude, e não rejeitá-la. Com isso ele acha que eu estou professando a supressão dos mestiços no Brasil e que isso faz parte do projeto de racialização do brasileiro. Não tinha nada para me acusar, soube que estou defendendo as cotas, tirou três frases e fez a acusação dele no jornal.Fórum - O senhor toca na questão do imaginário da democracia racial, mas as pessoas são formadas para aceitarem esse mito...Kabengele - O racismo é uma ideologia. A ideologia só pode ser reproduzida se as próprias vítimas aceitam, a introjetam, naturalizam essa ideologia. Além das próprias vítimas, outros cidadãos também, que discriminam e acham que são superiores aos outros, que têm direito de ocupar os melhores lugares na sociedade. Se não reunir essas duas condições, o racismo não pode ser reproduzido como ideologia, mas toda educação que nós recebemos é para poder reproduzi-la.Há negros que introduziram isso, que alienaram sua humanidade, que acham que são mesmo inferiores e o branco tem todo o direito de ocupar os postos de comando. Como também tem os brancos que introjetaram isso e acham mesmo que são superiores por natureza. Mas para você lutar contra essa ideia não bastam as leis, que são repressivas, só vão punir. Tem que educar também. A educação é um instrumento muito importante de mudança de mentalidade e o brasileiro foi educado para não assumir seus preconceitos. O Florestan Fernandes dizia que um dos problemas dos brasileiros é o “preconceito de ter preconceito de ter preconceito”. O brasileiro nunca vai aceitar que é preconceituoso. Foi educado para não aceitar isso. Como se diz, na casa de enforcado não se fala de corda.Quando você está diante do negro, dizem que tem que dizer que é moreno, porque se disser que é negro, ele vai se sentir ofendido. O que não quer dizer que ele não deve ser chamado de negro. Ele tem nome, tem identidade, mas quando se fala dele, pode dizer que é negro, não precisa branqueá-lo, torná-lo moreno. O brasileiro foi educado para se comportar assim, para não falar de corda na casa de enforcado. Quando você pega um brasileiro em flagrante de prática racista, ele não aceita, porque não foi educado para isso. Se fosse um americano, ele vai dizer: "Não vou alugar minha casa para um negro". No Brasil, vai dizer: "Olha, amigo, você chegou tarde, acabei de alugar". Porque a educação que o americano recebeu é pra assumir suas práticas racistas, pra ser uma coisa explícita.Quando a Folha de S. Paulo fez aquela pesquisa de opinião em 1995, perguntaram para muitos brasileiros se existe racismo no Brasil. Mais de 80% disseram que sim. Perguntaram para as mesmas pessoas: "você já discriminou alguém?". A maioria disse que não. Significa que há racismo, mas sem racistas. Ele está no ar... Como você vai combater isso? Muitas vezes o brasileiro chega a dizer ao negro que reage: "você que é complexado, o problema está na sua cabeça". Ele rejeita a culpa e coloca na própria vítima. Já ouviu falar de crime perfeito? Nosso racismo é um crime perfeito, porque a própria vítima é que é responsável pelo seu racismo, quem comentou não tem nenhum problema.Revista Fórum - O humorista Danilo Gentilli escreveu no Twitter uma piada a respeito do King Kong, comparando com um jogador de futebol que saía com loiras. Houve uma reação grande e a continuação dos argumentos dele para se justificar vai ao encontro disso que o senhor está falando. Ele dizia que racista era quem acusava ele, e citava a questão do orgulho negro como algo de quem é racista.Kebengele - Faz parte desse imaginário. O que está por trás que está fazendo uma ilustração de King Kong, que ele compara a um jogador de futebol que vai casar com uma loira, é a ideia de alguém que ascende na vida e vai procurar sua loira. Mas qual é o problema desse jogador de futebol? São pessoas vítimas do racismo que acham que agora ascenderam na vida e, para mostrar isso, têm que ter uma loira que era proibida quando eram pobres? Pode até ser uma explicação. Mas essa loira não é uma pessoa humana que pode dizer não ou sim e foi obrigada a ir com o King Kong por causa de dinheiro? Pode ser, quantos casamentos não são por dinheiro na nossa sociedade? A velha burguesia só se casa dentro da velha burguesia. Mas sempre tem pessoas que desobedecem as normas da sociedade.Essas jovens brancas, loiras, também pulam a cerca de suas identidades pra casar com um negro jogador. Por que a corda só arrebenta do lado do jogador de futebol? No fundo, essas pessoas não querem que os negros casem com suas filhas. É uma forma de racismo. Estão praticando um preconceito que não respeita a vontade dessas mulheres nem essas pessoas que ascenderam na vida, numa sociedade onde o amor é algo sem fronteiras, e não teria tantos mestiços nessa sociedade. Com tudo o que aconteceu no campo de futebol com aquele jogador da Argentina que chamou o Grafite de macaco, com tudo o que acontece na Europa, esse humorista faz uma ilustração disso, ou é uma provocação ou quer reafirmar os preconceitos na nossa sociedade.Fórum - É que no caso, o Danilo Gentili ainda justificou sua piada com um argumento muito simplório: "por que eu posso chamar um gordo de baleia e um negro de macaco", como se fosse a mesma coisa.Kabengele - É interessante isso, porque tenho a impressão de que é um cara que não conhece a história e o orgulho negro tem uma história. São seres humanos que, pelo próprio processo de colonização, de escravidão, a essas pessoas foi negada sua humanidade. Para poder se recuperar, ele tem que assumir seu corpo como negro. Se olhar no espelho e se achar bonito ou se achar feio. É isso o orgulho negro. E faz parte do processo de se assumir como negro, assumir seu corpo que foi recusado. Se o humorista conhecesse isso, entenderia a história do orgulho negro. O branco não tem motivo para ter orgulho branco porque ele é vitorioso, está lá em cima. O outro que está lá em baixo que deve ter orgulho, que deve construir esse orgulho para poder se reerguer.Fórum - O senhor tocou no caso do Grafite com o Desábato, e recentemente tivemos, no jogo da Libertadores entre Cruzeiro e Grêmio, o caso de um jogador que teria sido chamado de macaco por outro atleta. Em geral, as pessoas – jornalistas que comentaram, a diretoria gremista – argumentavam que no campo de futebol você pode falar qualquer coisa, e que se as pessoas fossem se importar com isso, não teria como ter jogo de futebol. Como você vê esse tipo de situação?Kabengele - Isso é uma prova daquilo que falei, os brasileiros são educados para não assumir seus hábitos, seu racismo. Em outros países, não teria essa conversa de que no campo de futebol vale. O pessoal pune mesmo. Mas aqui, quando se trata do negro... Já ouviu caso contrário, de negro que chama branco de macaco? Quando aquele delegado prendeu o jogador argentino no caso do Grafite, todo mundo caiu em cima. Os técnicos, jornalistas, esportistas, todo mundo dizendo que é assim no futebol. Então a gente não pode educar o jogador de futebol, tudo é permitido? Quando há violência física, eles são punidos, mas isso aqui é uma violência também, uma violência simbólica. Por que a violência simbólica é aceita a violência física é punida?Fórum - Como o senhor vê hoje a aplicação da lei que determina a obrigatoriedade do ensino de cultura africana nas escolas? Os professores, de um modo geral, estão preparados para lidar com a questão racial?Kabengele - Essa lei já foi objeto de crítica das pessoas que acham que isso também seria uma racialização do Brasil. Pessoas que acham que, sendo a população brasileira uma população mestiça, não é preciso ensinar a cultura do negro, ensinar a história do negro ou da África. Temos uma única história, uma única cultura, que é uma cultura mestiça. Tem pessoas que vão nessa direção, pensam que isso é uma racialização da educação no Brasil.Mas essa questão do ensino da diversidade na escola não é propriedade do Brasil. Todos os países do mundo lidam com a questão da diversidade, do ensino da diversidade na escola, até os que não foram colonizadores, os nórdicos, com a vinda dos imigrantes, estão tratando da questão da diversidade na escola.O Brasil deveria tratar dessa questão com mais força, porque é um país que nasceu do encontro das culturas, das civilizações. Os europeus chegaram, a população indígena – dona da terra – os africanos, depois a última onda imigratória é dos asiáticos. Então tudo isso faz parte das raízes formadoras do Brasil que devem fazer parte da formação do cidadão. Ora, se a gente olhar nosso sistema educativo, percebemos que a história do negro, da África, das populações indígenas não fazia parte da educação do brasileiro.Nosso modelo de educação é eurocêntrico. Do ponto de vista da historiografia oficial, os portugueses chegaram na África, encontraram os africanos vendendo seus filhos, compraram e levaram para o Brasil. Não foi isso que aconteceu. A história da escravidão é uma história da violência. Quando se fala de contribuições, nunca se fala da África. Se se introduzir a história do outro de uma maneira positiva, isso ajuda.É por isso que a educação, a introdução da história dele no Brasil, faz parte desse processo de construção do orgulho negro. Ele tem que saber que foi trazido e aqui contribuiu com o seu trabalho, trabalho escravizado, para construir as bases da economia colonial brasileira. Além do mais, houve a resistência, o negro não era um João-Bobo que simplesmente aceitou, senão a gente não teria rebeliões das senzalas, o Quilombo dos Palmares, que durou quase um século. São provas de resistência e de defesa da dignidade humana. São essas coisas que devem ser ensinadas. Isso faz parte do patrimônio histórico de todos os brasileiros. O branco e o negro têm que conhecer essa história porque é aí que vão poder respeitar os outros.Voltando a sua pergunta, as dificuldades são de duas ordens. Em primeiro lugar, os educadores não têm formação para ensinar a diversidade. Estudaram em escolas de educação eurocêntrica, onde não se ensinava a história do negro, não estudaram história da África, como vão passar isso aos alunos? Além do mais, a África é um continente, com centenas de culturas e civilizações. São 54 países oficialmente. A primeira coisa é formar os educadores, orientar por onde começou a cultura negra no Brasil, por onde começa essa história. Depois dessa formação, com certo conteúdo, material didático de boa qualidade, que nada tem a ver com a historiografia oficial, o processo pode funcionar.Fórum - Outra questão que se discute é sobre o negro nos espaços de poder. Não se veem negros como prefeitos, governadores. Como trabalhar contra isso?Kabengele - O que é um país democrático? Um país democrático, no meu ponto de vista, é um país que reflete a sua diversidade na estrutura de poder. Nela, você vê mulheres ocupando cargos de responsabilidade, no Executivo, no Legislativo, no Judiciário, assim como no setor privado. E ainda os índios, que são os grandes discriminados pela sociedade. Isso seria um país democrático. O fato de você olhar a estrutura de poder e ver poucos negros ou quase não ver negros, não ver mulheres, não ver índios, isso significa que há alguma coisa que não foi feita nesse país. Como construção da democracia, a representatividade da diversidade não existe na estrutura de poder. Por quê?Se você fizer um levantamento no campo jurídico, quantos desembargadores e juízes negros têm na sociedade brasileira? Se você for pras universidades públicas, quantos professores negros tem, começando por minha própria universidade? Esta universidade tem cerca de 5 mil professores. Quantos professores negros tem na USP? Nessa grande faculdade, que é a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), uma das maiores da USP junto com a Politécnica, tenho certeza de que na minha faculdade fui o primeiro negro a entrar como professor. Desde que entrei no Departamento de Antropologia, não entrou outro. Daqui três anos vou me aposentar. O professor Milton Santos, que era um grande professor, quase Nobel da Geografia, entrou no departamento, veio do exterior e eu já estava aqui. Em toda a USP, não sou capaz de passar de dez pessoas conhecidas. Pode ter mais, mas não chega a 50, exagerando. Se você for para as grandes universidades americanas, Harvard, Princeton, Standford, você vai encontrar mais negros professores do que no Brasil. Lá eles são mais racistas, ou eram mais racistas, mas como explicar tudo isso?120 anos de abolição. Por que não houve uma certa mobilidade social para os negros chegarem lá? Há duas explicações: ou você diz que ele é geneticamente menos inteligente, o que seria uma explicação racista, ou encontra explicação na sociedade. Quer dizer que se bloqueou a sua mobilidade. E isso passa por questão de preconceito, de discriminação racial. Não há como explicar isso. Se você entender que os imigrantes japoneses chegaram, nós comemoramos 100 anos recentemente da sua vinda, eles tiveram uma certa mobilidade. Os coreanos também ocupam um lugar na sociedade. Mas os negros já estão a 120 anos da abolição. Então tem uma explicação. Daí a necessidade de se mudar o quadro. Ou nós mantemos o quadro, porque se não mudamos estamos racializando o Brasil, ou a gente mantém a situação para mostrar que não somos racistas. Porque a explicação é essa, se mexer, somos racistas e estamos racializando. Então vamos deixar as coisas do jeito que estão. Esse é o dilema da sociedade.Revista Fórum – como o senhor vê o tratamento dado pela mídia à questão racial?Kabengele - A imprensa faz parte da sociedade. Acho que esse discurso do mito da democracia racial é um discurso também que é absorvido por alguns membros da imprensa. Acho que há uma certa tendência na imprensa pelo fato de ser contra as políticas de ação afirmativa, sendo que também não são muito favoráveis a essa questão da obrigatoriedade do ensino da história do negro na escola.Houve, no mês passado, a II Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Silêncio completo da imprensa brasileira. Não houve matérias sobre isso. Os grandes jornais da imprensa escrita não pautaram isso. O silêncio faz parte do dispositivo do racismo brasileiro. Como disse Elie Wiesel, o carrasco mata sempre duas vezes. A segunda mata pelo silêncio. O silêncio é uma maneira de você matar a consciência de um povo. Porque se falar sobre isso abertamente, as pessoas vão buscar saber, se conscientizar, mas se ficar no silêncio a coisa morre por aí. Então acho que o silêncio da imprensa, no meu ponto de vista, passa por essa estratégia, é o não-dito.Acabei de passar por uma experiência interessante. Saí da Conferência Nacional e fui para Barcelona, convidado por um grupo de brasileiros que pratica capoeira. Claro, receberam recursos do Ministério das Relações Exteriores, que pagou minha passagem e a estadia. Era uma reunião pequena de capoeiristas e fiz uma conferência sobre a cultura negra no Brasil. Saiu no El Pais, que é o jornal mais importante da Espanha, noticiou isso, uma coisa pequena. Uma conferência nacional deste tamanho aqui não se fala. É um contrassenso. O silêncio da imprensa não é um silêncio neutro, é um silêncio que indica uma certa orientação da questão racial. Tem que não dizer muita coisa e ficar calado. Amanhã não se fala mais, acabou. Revista Fórum

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

PLANSEQ Afro-descendentes Edital Licitação

Boas Novas!!

Companheiras e Companheiros,
Com muita alegria, comunico a todos vocês que o edital de licitação do PLANSEQE para profissionais afro-descendentes foi publicado no dia 6 de novembro de 2009. Tenhamos em mente que este é um momento histórico na luta do Negro brasileiro, quando, pela primeira vez, um programa do governo, de tamanha envergadura, atinge e beneficia, de maneira direta, 25 mil de nossos profissionais. Após quase dois anos de muito trabalho, conversas, acordos, parcerias, veremos coroados nossos esforços de transformação da vida dessas pessoas, e do caminhar em direção à Abolição de Fato! Agradecemos ao Ministro Carlos Lupi e a toda sua equipe do Ministério de Trabalho e Emprego, e destacamos a competência e o denodo de nosso mineiro Anderson Brito, e também de Iron Müller, responsáveis dentro da Comissão de Concertação, pela elaboração do projeto final do PLANSEQ, e da conquista de muitos de nossos parceiros do empresariado. Eu, pessoalmente, agradeço a todos pela força da esperança que nos levou, desde o Congresso da Secretaria Nacional do Movimento Negro, em janeiro de 2008, ao planejamento objetivo e correto para a realização de nossos sonhos. Para conhecimento, também confirmo a entrega ao Ministro Carlos Lupi, no último dia 28 de outubro, do Projeto Caixa d’Água, de autoria do Dr. Ubiratan Nogueira, Engenheiro de Meio Ambiente, que aceitou nossa idéia de levar água potável aos mais de 5.000 quilombos remanescentes, ou seja, levar aos quilombolas mais saúde, e melhores condições de vida, incluindo facilidades para o trabalho e renda, seja através da agricultura, seja através do artesanato. O Ministro, ciente da importância de semelhante proposta, aceitou ser o padrinho do projeto, para conquistar a parceria de outros ministérios e empresas públicas. Aguardamos ainda, para breve, a data da Audiência Pública para o PLANSEQ da Copa, proposta do Companheiro Aurélio Augusto do Mato Grosso, atual Secretário Municipal de Cidadania e Esporte de Cuiabá, cujo projeto final também contou com a dedicação de Iron Müller e Anderson Brito. Para encerrar com chave de ouro o ano de 2009, teremos a Conferência Abolição de Fato!, nos dias 4, 5 e 6 de dezembro próximo, em Brasília. A batalha da execução do nosso PLANSEQ, de maneira correta, dentro da ética e do cuidado com a “coisa pública”, dependerá do esforço de cada um de nós. Mais uma vez agradeço, e envio a todos vocês minhas saudações quilombolas e brizolistas,

Edialeda Salgado do Nascimento
Presidente da Secretaria Nacional do Movimento
Negro PDT