Por um quilombo do terceiro milênio
Antoninho Marmo Trevisan, Jornal do Brasil
RIO - O Dia da Consciência Negra é comemorado em 20 de novembro, data em que o bandeirante Domingos Jorge Velho teria assassinado Zumbi dos Palmares, no ano de 1695. Na ocasião, o herói da luta negra contra a escravidão contava cerca de 40 anos de idade.
Se vivesse hoje, o quarentão de pele escura seria um homem sem curso superior, com renda mensal inferior a mil reais. Se fosse casado, sua mulher estaria desempregada, ou trabalharia sem carteira assinada e ganharia mais ou menos 700 reais por mês. Os filhos teriam largado a escola antes de concluírem o ensino fundamental. Se algum deles ingressasse na universidade, seria o primeiro diplomado da família.
Imaginar um presente tão pouco glorioso para uma das figuras mais importantes da história brasileira não é delírio, mas uma dedução razoável quando se toma como base a Relação Anual de Informação Social (Rais) do Ministério do Trabalho, que teve sua última edição divulgada em meados deste ano.
O Rais mostra que o Brasil ainda é um país em que as oportunidades de trabalho e de melhoria de renda estão nas mãos dos homens brancos. Eles ocupam 11,9 milhões de postos de trabalho formais, contra 7,6 milhões de empregos ocupados por mulheres brancas e apenas 498.521 por mulheres negras. O salário médio dos brancos é de R$ 1.671,00; das mulheres brancas, R$ 1.407,00, e das negras, em torno de R$ 790.
Esses dados revelam uma realidade incômoda: embora o Brasil não seja um país racista na estrita acepção do termo, ainda persiste uma discriminação subjacente, disfarçada.
De acordo com o mapa das ações afirmativas no ensino superior, elaborado pelo Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), 32% das instituições públicas de ensino existentes no país (ou seja, 72 delas) promovem algum tipo de ação afirmativa. Destas, 53 adotam cotas étnico-raciais, sendo que 34 instituições possuem medidas afirmativas específicas para negros. O critério mais utilizado para identificar quem tem direito às cotas é a autodeclaração.
A falta de critérios mais bem delineados para a inclusão deste ou daquele indivíduo nos benefícios das ações afirmativas suscita distorções, como o episódio em que dois gêmeos idênticos se candidataram à Universidade de Brasília pelo sistema de cotas e apenas um deles foi considerado negro. Esses casos isolados põem fogo nos debates, mas tiram do foco o que é mais importante: primeiro, saber se as cotas funcionam; segundo, descobrir se elas são, de fato, a melhor opção para o Brasil, ou se fizeram sentido em um momento específico de um país que nada tem a ver com o nosso – no caso, os Estados Unidos pós-anos 60.
As disparidades brasileiras devem ser analisadas a partir da perspectiva de um racismo estrutural, calcado em analfabetismo. No começo desta década, havia 47% de negros, com 60 anos ou mais de idade, analfabetos, e 25% dos brancos na mesma situação. E, enquanto os brasileiros brancos permanecem na escola por 7,7 anos (o que é pouco!), os negros estudam, em média, 5,8 anos.
Quem atua junto a grandes organizações, como é o meu caso, percebe na prática que o mundo corporativo ainda não tem uma presença significativa de mulheres, nem de negros, e menos ainda de mulheres negras jovens. E nas faculdades de contabilidade, que são celeiros de futuros auditores e consultores, esse perfil étnico não se faz presente de maneira significativa. O que afasta essas pessoas de uma profissão que é, a um só tempo, interessante, rentável e ascendente?
Como se vê, as perguntas são muitas, e as respostas, poucas e insatisfatórias. Corrigir distorções históricas é fundamental para a construção de um país mais justo. Não se deve, contudo, incorrer no erro de reduzir a questão da exclusão social ao aspecto étnico-racial. Num país como o nosso, onde uma pessoa de sobrenome italiano pode ter a pele escura e traços inequivocamente africanos, as políticas públicas voltadas para a promoção da equidade precisam ser cuidadosamente planejadas.
No meu entendimento, o foco primordial deve ser a busca por uma educação cada vez mais excelente. O ensino gratuito, universal e de boa qualidade é o primeiro passo para tirar as crianças e os jovens da perigosa zona de exclusão. Mais do que um Dia da Consciência Negra, este 20 de novembro deve ser um Dia da Consciência Brasileira, no qual todos nós, louros, pretos, ruivos, de olhos azuis ou olhos puxados, de cabelos lisos ou encaracolados, estaremos unidos em torno de um só projeto: a construção de um país melhor.
Antoninho Marmo Trevisan, além de empresário, é educador e consultor, presidente da Trevisan Gestão, Consultoria e Educação e do Conselho Consultivo da BDO e, ainda, membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES).
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